Os privilégios oferecidos a políticos no exercício de suas funções voltam ao centro das discussões e são alvo de uma série de questionamentos
Por Marcos Mortar
As preocupações acerca dos esforços da classe política em obstruir as investigações da
Operação Lava Jato não deixam de rondar os gabinetes e corredores da capital federal. Mais do que as
tentativas de se costurar um pacto da oligarquia para frear diretamente ou circunscrever a atuação da Polícia
Federal e Ministério Público, não são poucas as manifestações de preocupação com a capacidade de o
sistema judiciário vigente avaliar os casos envolvendo forças políticas, e, quando for o caso, puni-las. Mais
uma vez, a pauta do foro privilegiado, oferecido a políticos no exercício de suas funções, assume o centro
das discussões e é alvo de uma série de questionamentos.
Recentemente, em editorial dedicado às primeiras semanas da gestão do presidente interino Michel Temer, o
jornal norte-americano The New York Times chamou atenção para o mecanismo que concede privilégios
aos representantes do povo eleitos. “Pela lei brasileira, altos funcionários do governo, incluindo os
parlamentares, gozam de imunidade contra processos na maioria das circunstâncias. Tal proteção
desarrazoada permitiu uma cultura de institucionalização da corrupção e impunidade”, escreveram os
editorialistas. No texto, a publicação lançou dúvidas sobre a disposição do peemedebista em erradicar a
corrupção.
Na avaliação do presidente da Associação Juízes para a Democracia, André Augusto Bezerra, qualquer
diferenciação pessoal da incidência das leis é questionável e merece discussão profunda e desapaixonada.
“Talvez essa seja uma oportunidade para discutirmos o foro privilegiado. Pessoalmente, sou contra. Sou
contrário que se mude uma jurisprudência em razão de uma única pessoa”, disse em entrevista ao
InfoMoney em março, quando se discutia a nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o
ministério da Casa Civil do governo Dilma Rousseff. Na ocasião, a oposição acusou os petistas de
obstruírem as investigações conduzidas pela Operação Lava Jato ao conceder o foro por prerrogativa de
função a Lula, enquanto petistas defendiam a legalidade da iniciativa, como tentativa de contar com a
contribuição do ex-presidente para tirar o país da crise.
“O foro por prerrogativa de função, apelidado de foro privilegiado, é um mal para o Supremo Tribunal
Federal e para o país. É preciso acabar com ele ou reservá-lo a um número mínimo de autoridades, como os
chefes de Poder”, escreveu o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso em artigo
publicado no portal Conjur. Na avaliação do magistrado, há três razões que justificam a eliminação de tal
mecanismo considerado regalia no mundo jurídico.
A primeira, filosófica, seria a evidência de se tratar de “reminiscência aristocrática, não republicana, que dá
privilégio a alguns, sem fundamento razoável”. Outra linha de argumentação caminha por razões estruturais,
com a alegação de que cortes constitucionais não foram concebidas para funcionar como juízos criminais de
primeiro grau. “O STF não está equipado nem é o foro adequado para fazer esse tipo de juízo de primeiro
grau”, afirmou Barroso em evento organizado em maio pela revista Veja, em São Paulo. Por fim, o terceiro
motivo seria o resultado da impunidade resultante do foro, uma vez que promove a lentidão dos julgamentos
“e permite a manipulação da jurisdição”, uma vez que o tribunal cabível varia de acordo com o cargo
ocupado pelo político envolvido.
Segundo o magistrado, tramitam atualmente no Supremo 369 inquéritos e 102 ações penais contraparlamentares, com prazo médio de 617 dias para o recebimento da denúncia -- quando um juiz de primeiro
grau recebe em menos de uma semana. Conta ele que, em quinze anos, já ocorreram 59 casos de prescrição
entre inquéritos e ações penais. Barroso defende que se crie uma vara federal especializada para julgar casos
que hoje desfrutam de foro, com um juiz titular com mandato de quatro anos, escolhido pelo STF. O
ministro conclui o artigo reafirmando a necessidade de se enfrentar a corrupção e a impunidade, sob a
perspectiva de “valorizar os bons em lugar dos espertos”. “Esta talvez seja uma das maiores conquistas que
virá de um novo paradigma de decência e seriedade”, encerra Barroso.
No mesmo sentido, o jurista Luiz Flávio Gomes, presidente do Instituto Avante Brasil, argumenta que o foro
privilegiado corresponde a “cleptocracias” “antirrepublicanas” em ambiente de “corrupção sistêmica” e sua
eliminação “constitui uma das microrrevoluções jurídicas urgentíssimas de que o Brasil necessita (é
aristocrático, viola a igualdade e favorece a prescrição)”.
Em artigo escrito em sua página oficial, Gomes apoia a ideia exposta por Barroso, argumentando que o
Supremo não teria estrutura para fazer frente à demanda de processos que precisa analisar. “Na Lava Jato,
até agora, das 11 denúncias oferecidas, o STF só conseguiu receber uma delas (contra Eduardo Cunha).
Hoje se vê no Brasil dois sistemas de Justiça: a Justiça Moro e a Justiça morosidade (STF)”, observa.
“Quando o input do sistema é totalmente incompatível com o output, é uma irracionalidade manter esse
sistema”.
Gomes pede a urgência de uma revolução no sistema judiciário, com o fim do foro privilegiado para o
combate efetivo ao patrimonialismo e à corrupção endêmica brasileira. “Os países de tradição extrativista e
sistemicamente corruptos (as cleptocracias), invariavelmente, não só levam suas economias à recessão (e à
estagnação) como interferem na configuração de todas as demais instituições do país, a começar pelas
jurídicas”, conclui.
Ainda transparecendo o ceticismo das ruas com relação às posições de Temer sobre a continuidade das
investigações que atingem em cheio o universo político, o editorial do NYT sugeriu uma iniciativa que pode
afastar as atuais suspeitas que pairam sobre a recente gestão do peemedebista: “Não está claro até que ponto
Temer irá erradicar a corrupção. Se ele for sério e quiser acabar com a suspeita sobre os motivos para o
afastamento de Dilma, seria sensato que ele encaminhasse uma lei que pedisse o fim da imunidade para
parlamentares e ministros em casos de corrupção”. Difícil qualquer previsão sobre a dimensão das
mudanças com um possível fim de foro privilegiado, mas a medida tem encontrado cada vez menos
defensores na opinião pública.
Fonte: (infomoney)
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